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A Outra Cena

Atualizado: 15 de out. de 2020


Luzes, câmera, ação... A ordem dada pelo diretor é endereçada aos artistas, aos técnicos da iluminação, aos que fazem os takes. A única voz a se ouvir é a dos atores, que tem a sorte de, por uns poucos minutos, sair da sua pele para vestir a dos outros. A atriz pode então levantar a espada e bradar como uma heroína. Ou encarnar as dores de uma personagem sofrida. Ao seu lado, o ator, de paletó, ora faz às vezes de um executivo, ora é um simples figurante. Nem é preciso vivenciar os fatos...basta encená-los para dar vazão a uma complexidade de afetos e pensamentos.


Freud falou o mesmo a respeito dos espectadores ou leitores... basta assistir à peça para deixar sair uma tristeza ou uma angústia qualquer, ou ainda uma alegria da qual sequer se tinha conhecimento. Vive-se o papel de um herói sem correr os mesmos riscos, e desse jeito se pode desafiar até o diabo em segurança. Sofrências e castigos são distribuídos por culpas incomensuráveis nos dramas. E nos romances morre-se de amor. Depois, é possível voltar para casa, tomar um lanche tranquilo e ler o jornal.


Os tipos de descarga podem ser escolhidos em um catálogo: na poesia lírica e na dança, extravasa-se a sensibilidade intensa; na poesia épica, há um gozo exacerbado no momento do triunfo do herói; no drama, a satisfação vem na forma masoquista; na comédia a inquietação é despertada mas aplacada; por fim, na tragédia, há a sensação de um sofrimento concreto. Os sentimentos gerados são de ordem fantasística, pois é bem evidente que todos querem esquecer tudo quando o filme acabar. A fantasia é a grande motriz do que aí se desenrola; através da arte os significantes ganham essa propriedade de passar de mão em mão: a emoção da cena é transmitida fantasisticamente para os espectadores que se deixam envolver pelo espetáculo.


Nos sonhos é um pouco diferente. Aqui, não apenas vivemos na pele de cada um dos atores, como também somos o diretor, o iluminador e o próprio roteirista. Freud denominou a “outra cena”, essa para a qual transportamo-nos cada vez que fechamos os olhos e nos permitimos sonhar. Aqui não se trata mais de pegar emprestados sensações ou vivências para dar vazão a emoção, na forma de um certo contágio histérico. Aqui a cena somos nós mesmos. Não apenas os atores, nem o cenário - somos a própria cen a.


O sonho, nos alerta Freud, deve ser interpretado como se fosse um rébus, através de uma leitura pictográfica. Tudo que está ali deve ser considerado, sendo que, às vezes os elementos que parecem mais irrelevantes são os mais importantes. A chave de tudo é a identificação, que através dos mecanismos da compensação e do deslocamento combinam e fragmentam características e personagens.


Trata-se, no sonho, muito mais do simbólico do que do imaginário – o inconsciente se revela, escrito através da composição que forma o sonho. Quando, ao interpretá-lo, combinamos os dois, simbólico e imaginário - chega-se ao sentido do que se sonhou. Vem sempre acompanhado de uma sensação de incredulidade (como posso ter sonhado isso?) e alívio, pelo fato de se estar decifrando um enigma – o enigma de si mesmo, do seu desejo. Pois é o desejo que, em última instância, é revelado nessa “outra cena”. Se quando estamos acordados, os muros erguidos o mantém distante, quando os leões dormem é a vez dele se mostrar.





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